Escrito por: Procuradoria da República em Chapecó/SC

MPF recomenda instituições a se absterem de aplicar sanções a professores por suposta doutrinação

O Ministério Público Federal de Chapecó (SC) orienta as instituições de ensino a adotarem medidas para que docentes não sejam assediados moralmente por estudantes, familiares ou responsáveis.

REPRODUÇÃO
Eleita pelo PL, Campagnolo é cotada para a Secretaria de Educação de Santa Catarina

Inquérito Civil nº 1.33.002.000469/2018-60

Recomendação Nº 22, de 29 de outubro de 2018.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República signatário, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, com fundamento no artigo 129, da Constituição da República, no artigo 5º, inciso I, alínea "h", inciso II, alínea "d", inciso III, alíneas "b" e "e"; e artigo 6º., inciso XX, todos da Lei Complementar 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União), e:

CONSIDERANDO a instauração nesta Procuradoria da República do Inquérito Civil em epígrafe, que objetiva apurar, no âmbito de atribuição desta unidade do Ministério Público Federal, suposta intimidação a professores do estado de Santa Catarina, por parte de deputada estadual eleita no último pleito;

CONSIDERANDO, contudo, que, segundo há muito já demonstraram as ciências da antropologia e da arqueologia, o que diferencia o ser humano dos demais animais é sua imensa capacidade de produzir (e reproduzir) cultura, não existindo, portanto, natureza humana independente de cultura;

CONSIDERANDO, dessa forma, que os homens são efetivamente "artefatos culturais", animais amarrados a suas "teias de significado", àqueles elementos culturais - religião, arte, ciência, política, ideologia etc. - que dão significado à sua existência, e que, em decorrência disso, o homem apresenta incontáveis possibilidades de ser, nenhuma delas superior ou inferior às demais, apenas diferenciadas;

CONSIDERANDO que, atento a essa realidade e à imensa evolução no paradigma civilizatório dos Estados Democráticos de Direito, que se reflete nos direitos assegurados em diversas normas internacionais, o Constituinte de 1988, ao lado do direito à igualdade - que se mostrava insuficiente, pois tratava o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata -, consagrou também um verdadeiro direito à diferença, voltado às especificidades do ser humano concreto e situado, visto em sua peculiaridade e particularidade, a exigir respostas específicas e diferenciadas para a efetiva e completa tutela de sua dignidade;

CONSIDERANDO que o capítulo da Constituição reservado à Educação também consagra esse novo paradigma, estabelecendo que a educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania - e não apenas sua qualificação para o trabalho -, tendo entre seus princípios a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (arts. 205 e 206);

CONSIDERANDO que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), além de semelhantes previsões, também estabelece como princípios do ensino no país o respeito à liberdade e o apreço à tolerância, a valorização da experiência extra-escolar, a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e a consideração com a diversidade étnico-racial;

CONSIDERANDO que, conforme preceitua o artigo 1º da LDB, a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais;

CONSIDERANDO que são diretrizes do Programa Nacional de Educação, a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação, e formação, não apenas para o trabalho, mas também para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; conforme artigo 2º, III e V, da Lei nº 13.005/2014;

CONSIDERANDO que qualquer tentativa de obstar a abordagem, a análise, a discussão ou o debate acerca de quaisquer concepções filosóficas, políticas, religiosas, ou mesmo ideológicas - que não se confundem com propaganda político-partidária -, desde que não configurem condutas ilícitas ou efetiva incitação ou apologia a práticas ilegais, representa flagrante violação aos princípios e normas acima referidos;

CONSIDERANDO, ademais, que o próprio projeto que se intitula "Escola sem partido" configura claramente mais uma concepção ideológica, também constitui um "credo em luta", pois pretende restringir o ensino e a aprendizagem a um conjunto de temas e conteúdos e segundo uma específica concepção pedagógica que crê serem os únicos adequados a se trabalhar em sala de aula, não podendo, portanto, como quaisquer outras, pugnar ao Estado sua exclusividade em nosso sistema educacional;

CONSIDERANDO que um ensino e uma aprendizagem efetivamente plurais - objetivos fundamentais de nosso sistema educacional - somente podem se desenvolver em um ambiente em que as bases curriculares sejam abordadas em um ambiente de liberdade de ideias e de respeito à imensa diversidade que caracteriza o nosso país;

CONSIDERANDO representações recebidas, que dão conta de que uma deputada estadual eleita no recente pleito estaria conclamando estudantes a realizar filmagens do que denomina "professores doutrinadores" que, segundo ela, "inconformados e revoltados" com o resultado da eleição para presidente da república, iriam fazer da sala de aula "auditório cativo para suas queixas político partidárias", insuflando então os estudantes a filmar e gravar todas as manifestações que - em seu entendimento - seriam "político-partidárias ou ideológica (sic)";

CONSIDERANDO que pesquisas realizadas na rede social Facebook denotam que efetivamente a deputada estadual catarinense, eleita no recente pleito, Sra. Ana Caroline Campagnolo, manifestou-se nesse sentido;

CONSIDERANDO que tal conduta, além de configurar flagrante censura prévia e provável assédio moral em relação a todos os professores do Estado de Santa Catarina, das instituições públicas e privadas de ensino, não apenas da educação básica e do ensino médio, mas também do ensino superior, afronta claramente a liberdade e a pluralidade de ensino acima delineadas;

CONSIDERANDO, ainda, que a Lei Estadual nº 14.363/2008 dispõe sobre a proibição do uso de telefone celular nas escolas - públicas e privadas - no Estado de Santa Catarina;

CONSIDERANDO que a Constituição da República destaca a educação entre os direitos sociais do cidadão (art. 6º), declarando ser "direito de todos e dever do Estado e da família", a qual "será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (artigo 205);

CONSIDERANDO que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência (artigo 23, I e V, da Constituição Federal);

CONSIDERANDO que a educação é direito difuso, cujo dever de zelo também incumbe ao Ministério Público Federal (artigo 5º, II, "d", e V, "a", da Lei Complementar 75/93);

CONSIDERANDO que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal);

CONSIDERANDO, por fim, que é função institucional do Ministério Público Federal zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos Serviços de Relevância Pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, bem como promover o Inquérito Civil e a Ação Civil Pública para a proteção do Patrimônio Público e Social e de outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos especialmente os relativos à família, à criança, ao adolescente, ao idoso e ao consumidor(art. 129, II e III, da Constituição Federal e art. 6º, VII, "a", "b", "c" e "d", da Lei Complementar nº 75/93);

RESOLVE, na forma do art. 6º, XX, da Lei Complementar nº 75/93, RECOMENDAR às INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR DESTA REGIÃO e GERÊNCIAS REGIONAIS DE EDUCAÇÃO, na pessoa dos seus respectivos representantes legais, que se abstenham de qualquer atuação ou sanção arbitrária em relação a professores, com fundamento que represente violação aos princípios constitucionais e demais normas que regem a educação nacional, em especial quanto à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e ao pluralismo de ideias e de concepções ideológicas, adotando as medidas cabíveis e necessárias para que não haja qualquer forma de assédio moral em face desses profissionais, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL adverte que a presente recomendação dá ciência e constitui em mora o destinatário quanto às providências solicitadas, podendo a omissão na adoção das medidas recomendadas implicar o manejo de todas as medidas administrativas e ações judiciais cabíveis contra os que se mantiverem inertes, inclusive de responsabilização pessoal do Administrador Público, quando for o caso.

Nesse passo, com fundamento no art. 8º, II, da Lei Complementar nº 75/93, requisita-se, desde logo, que Vossa Senhoria informe, em até 10 (dez) dias úteis, se acatará ou não esta recomendação, apresentando, em qualquer hipótese de negativa, os respectivos fundamentos.

Ciência desta recomendação a todas associações e entidades sindicais representativas de professores nesta região, bem como à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Encaminhe-se cópia desta recomendação e da íntegra do Inquérito Civil nº 1.33.002.000469/2018-60 ao Ministério Público do Trabalho, para adoção das medidas que eventualmente entenda cabíveis no âmbito de sua atribuição.

CARLOS HUMBERTO PROLA JÚNIOR

PROCURADOR DA REPÚBLICA